Ricardo Antunes define terceirizações como “Escravidão moderna do século XXI”

Antunes é um dos maiores especialistas sobre o mundo do trabalho no Brasil. Sociólogo e professor titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no interior de São Paulo, ele já publicou em diversos países e é uma das grandes referências marxistas sobre o mundo do trabalho no Brasil. Ao Primeira Classe*, jornal mensal do Sindicato dos Professores Municipais de Santa Maria, o sociólogo falou durante cerca de meia hora em uma manhã de sexta-feira. Solícito e entusiasmado com seu objeto de pesquisa, o professor tem sido frequentemente convidado a dar entrevistas nas últimas semanas desde que o PL 4330 emergiu como um dos grandes assuntos da política nacional – naquela manhã ele recém havia conversado com uma equipe da Revista do Instituto Humanitas, da Unisinos.

 

primeira classe: Uma das justificativas dos proponentes e apoiadores do Projeto de Lei 4330/2004 é que há uma “insegurança jurídica” no Brasil quanto à legislação trabalhista. O senhor considera que exista esse problema? Há também um argumento de que a terceirização pode criar mais vagas. É possível?

 

Ricardo Antunes: Os dois argumentos são pura falácia e ideologia do empresariado para esconder o verdadeiro objetivo do PL 4330. Comecemos por desmontar o segundo argumento: a terceirização não emprega. Na verdade, desemprega. Sabemos que um trabalhador terceirizado trabalha, em média, de 25 a 30% a mais por dia e recebe em média 25% a menos. Qualquer criança que estuda matemática sabe que um trabalhador que labuta mais e recebe menos significa que menos gente será necessária para realizar a mesma tarefa. De maneira mais intensificada, explorada e vilipendiada, é claro. O argumento é falacioso porque o empresariado nunca poderá dizer abertamente que o seu projeto tem objetivo de reduzir custos e direitos, aumentar a rotatividade da classe trabalhadora, aumentar o lucro das empresas que contratam terceirizados e dificultar sua organização sindical. Estes são, entretanto, os objetivos centrais do PL. A insegurança é simples de resolver: a classe trabalhadora que hoje é terceirizada deve passar a ser regida pela CLT e ter direitos. Isto significa que a ideia da insegurança é falaciosa. Se 12 milhões vivem em “insegurança” hoje e se a terceirização for liberada para atividade-fim, isto significa que mais de 40 milhões de trabalhadores passarão a este status. Ninguém cria sindicato de uma hora para a outra e nenhum sindicato passará a incorporar os terceirizados automaticamente. Sabe-se que uma das principais características do trabalho terceirizado é a alta rotatividade e a insegurança, que são duas bombas contra a organização sindical. Um número cada vez menor de trabalhadores terá a possibilidade de organizar a resistência.

 

A terceirização vem crescendo no Brasil e hoje já atinge 20% das carteiras assinadas. É um fenômeno local ou está atrelado a uma tendência global?

 

A terceirização é uma imposição dos capitais globais. A FoxCom [fabricante de componentes eletrônicos sediada em Taiwan], por exemplo, é uma grande multinacional que presta serviço como montadora dos produtos da Apple [desenvolvedora de produtos eletrônicos sediada nos Estados Unidos] e de outras marcas, por exemplo. É parte de uma imposição global que é mais ou menos intensa dependendo da resistência dos trabalhadores de cada país, dos seus respectivos movimentos sindicais e de trabalhadores. A terceirização, se depender da lógica dos capitalistas financeiros e da era das transacionais, vai acontecer integralmente. Mas, se você observar países como França, Itália e os países escandinavos, por exemplo, com diferentes formas e modelos de representação sindical a terceirização é mais combatida e limitada. Nos casos estadunidense e inglês, por outro lado, a terceirização é mais intensa. O ataque do neoliberalismo foi muito duro às organizações de trabalhadores de Estados Unidos e Inglaterra. O mesmo vale para a América Latina: a depender da organização dos trabalhadores há mais ou menos terceirização. No Equador, por exemplo, há uma tentativa muito sólida de barrar a terceirização. É como um termômetro de um sindicalismo combativo e organizado: quando há organização e resistência, a terceirização se resume a áreas menos fundamentais das empresas. Quando a pressão do capitalismo é mais forte, a terceirização se amplia. É assim que temos observado.

 

Quais são as implicações para a economia nacional? Não seria um erro para o capitalismo nacional, que perderia força de seus grandes sustentáculos – o consumo interno – do crescimento econômico na última década?

 

O capitalismo tem antinomias e contradições que ele mesmo não equaciona. Uma delas é o fato que o capital não se reproduz sem a vivacidade de quem produz, ou seja, a classe trabalhadora. O capitalismo gostaria de poder eliminar os trabalhadores, mas não pode fazê-lo, senão ele elimina o próprio criador da riqueza e do valor. A mesma coisa vale para a terceirização. Os empresários arriscam porque há uma força de trabalho sobrante no Brasil. Nossa população economicamente ativa está na casa de 100 milhões de trabalhadoras e trabalhadoras em um contexto de crise econômica profunda. Não há mais aquele mito de que o Brasil tem um novo projeto econômico alternativo. Tudo isso ruiu. A crise internacional acentuou-se durante os anos de 2013 e 2014 em países como o nosso. Consequentemente o empresariado está arriscando que reduzir custos, dificultar a organização da classe e dividir os trabalhadores pela alma vá lhes favorecer. Mesmo que a economia regrida por conta da queda do consumo, eles apostam que vão ter mais ganhos através da precarização. Uma coisa sustenta a outra. A tradição do nosso capitalismo do século 20 – não dos últimos anos, mas a mais longo prazo – é de se sustentar com base em um mercado interno restrito e seletivo. Produzindo carros de luxo, para eles, compensa a perda de lucros produzindo carros populares.

 

O sociólogo Ruy Braga definiu o PL 4330 como “a maior derrota dos trabalhadores brasileiros desde o golpe de 1964”. O senhor considera que o projeto de lei é uma exceção ou parte de um projeto de retirada de direitos? Quais foram outras perdas recentes da classe trabalhadora?

 

O PL 4330 não é exceção. Hoje mesmo, em entrevista à revista da Unisinos, aí do Rio Grande do Sul, eu afirmei que a aprovação do PL tem o efeito de uma regressão à escravidão do trabalho no Brasil. Uma escravidão moderna do século XXI. É um golpe duro, um marco constitutivo do mercado de trabalho e do capitalismo brasileiro. O problema é que a regulação do trabalho é sempre uma confrontação entre capital versus trabalho. Enquanto o neoliberalismo foi devastador nos anos 70 e 80 na Europa, nos Estados Unidos e em outros países, nós conseguimos resistir bem. Na década de 80, por exemplo, houve mais de quatro greves gerais no Brasil, além de milhares de greves de categorias. O neoliberalismo vem devastador nos anos 90, e nos anos 2000 teve continuidade com o governo social-liberal de Lula – quando conseguimos segurar parcialmente alguns direitos. Mas é um traço constitutivo do capitalismo brasileiro a perpetuação da super-exploração do trabalho. E a super-exploraçao que tipifica países como o Brasil está presente agora, de forma devastadora, no PL 4330.

 

Como o senhor avalia a resistência institucional – isto é, dentro do parlamento, do poder executivo e dos partidos – ao PL? Foi uma surpresa observar que nem a base aliada do governo se opôs à retirada de direitos trabalhistas? É possível que as esquerdas se reúnam novamente por uma causa em comum?

 

O parlamento brasileiro, com raras exceções, sempre foi um instrumento de conservação da ordem. É conservador por excelência. Não é por acaso que em muitos momentos da história política o parlamento esteve contra os anseios populares. O caso mais gritante foi quando a Câmara dos Deputados legitimou, em 1964, o Golpe Militar declarando a vacância da Presidência da República quando João Goulart foi para Porto Alegre – não por abandonar o poder, mas porque percebeu que em Brasília a sua segurança como presidente estava fragilizada e foi para um lugar onde tivesse uma melhor acolhida. A Câmara legitimou o Golpe que teve consequências nefastas para a história brasileira: é um exemplo de que em raríssimas vezes o parlamento é uma caixa de ressonância do desejo popular. É frequentemente um órgão da conservação, e é por isso que tem um repúdio popular muito acentuado. Há uma predominância que acompanha os desígnios de ordem conservadora. Basta observar que, durante a votação da PL 4330, o parlamento reprime com sua segurança as manifestações de trabalhadores e estende tapete para o empresariado. A luta institucional, porém, só tem sentido e funciona quando ecoa as ruas: nas revoltas de junho de 2013 o parlamento tremeu. Nunca trabalhou tanto quanto nas semanas seguintes às revoltas populares. Algumas semanas depois, entretanto, voltou à normalidade – ou seja, a lógica da conciliação, das negociatas, dos acordos, do “dando que se recebe”. Isto leva à situação atual. A pressão possível e necessária – considerando que o PL ainda passa pelo Senado e pela Presidência – tem que vir hoje das ruas. É decisivo que haja pressão dos trabalhadores e trabalhadoras que compõem a maioria esmagadora deste país. A pressão – colocada em prática em paralisações, greves, manifestações, passeatas, debates, artigos, pronunciamento – acaba tendo repercussão. O mais difícil é que a classe trabalhadora ainda não entendeu bem o projeto. Ele é cheio de nuances para que passe o essencialmente nefasto e perverso: a terceirização de todas as atividades meio e fim. Nesta luta, quem é contra esse projeto é aliado. Naturalmente, aliados pontuais. É possível a partir daí a retomada de um movimento mais amplo? Sim. Mas isso não pode significar que, derrotado no poder, o PT agora venha para as esquerdas e diga: “quero uma aliança com vocês sob meu comando”. O PT perdeu a credibilidade junto a amplos setores do sindicalismo, da esquerda e dos movimentos populares, o que significa que uma aliança não é tão simples. O lançamento de uma frente de esquerda em 2018 com Lula – que cedeu aos capitais financeiros, ao agronegócio, aos interesses transnacionais – ou com a Dilma – que disse que faria um governo de esquerda e chamou Joaquim Levy [que trabalhou para bancos privados e para o Fundo Monetário Internacional] para Ministro da Fazenda, compondo uma frente ampla das direitas – é possível? São dois níveis: um é juntar todos aqueles que são contra o PL. Outro é aliar-se a todos aqueles que comprometeram-se com o governo com esses 12 anos com o PT e perderam a credibilidade para serem porta-vozes da esquerda. O PT nunca quis compor esta frente. Suas alianças sempre foram com as direitas e um pequeníssimo espaço da esquerda através do PC do B, que sempre teve sintonia com as teses do PT ao menos em sua parte mais fundamental. As políticas implementadas nos últimos anos nunca tiveram sentido profundo de esquerda. Juntar todos que lutam contra a terceirização são fundamentais. Frente de esquerda é outra história.

 

Caso o projeto final contenha também a possibilidade de terceirização no setor público, quais são as possíveis consequências? E para a educação? Já há notícias de um plano do governo federal em terceirizar professores universitários através da criação de uma Organização Social.

 

Esta é uma questão muito importante, sobretudo vinda de um sindicato de professores. A terceirização no setor público é sem sombra de dúvida nefasta: ela é colocada como redutora de custos, mas muitas vezes aumenta-os, além de criar grupos e cunhas privados dentro do setor público. Uma empresa privada que agencia trabalhadores age segundo interesses privados: se o setor público contrata uma empresa para comprar passagens aéreas, por exemplo, ele paga além das passagens o lucro da corporação contratada. Isto pode ser potencializado à enésima dimensão. A terceirização no setor público também, cria polos de corrupção. A segunda coisa é que o STF acaba de tomar uma decisão neste mês: ele determinou a possibilidade da terceirização plena na educação pública. Isto seria a destruição completa e cabal da educação pública. O que mantem o ensino público de qualidade são professores contratados e remunerados com dignidade, com tempo para pesquisa e docência, com um mínimo de segurança para estudo e reflexão – um professor que tem 40 horas semanais de sala de aula não tem tempo para estudar, ele terá dificuldades por mais dedicado que seja porque estará exaurido –, com uma autêntica dimensão humana de reflexão sobre o conhecimento. Esse PL deveria pelo menos eliminar a mínima possibilidade de terceirização de atividades-fim, de terceirizar o setor público e em essencial na educação. Na minha opinião, deveríamos estar lutando contra toda a terceirização, mas o momento é adverso, estamos em uma era de golpes vindos do parlamento e das direita. Se em junho de 2013 tivemos uma conjuntura mais favorável, agora vemos uma onda conservadora no país. Consequentemente, os professores públicos têm que fazer da luta contra a terceirização uma questão vital. Não é por acaso que há greves dos professores por todo o lado: no estado de São Paulo, no Paraná recentemente, no Rio Grande do Sul através de paralisações e em muitas outras cidades e estados do Brasil. O professor é um exemplo da precarização do trabalho. A sua atividade fundante é de intelecto: um professor de matemática tem que ser um bom matemático, um professor de história tem que conhecer bem a história. Esta é a atribuição precípua, que é centralmente intelectual. A precarização do trabalho docente, o aviltamento das condições de exercício da profissão, os salários baixos e o excesso de carga horária levaram à corrosão e à proletarização dos professores. No estado de São Paulo, por exemplo, há um excessivo número de professores substitutos, que são avulsos, ganham pelo dia de trabalho. É por isso que os professores se rebelam por todas as partes do Brasil: contra a tendência de precarização que há por toda a parte. A terceirização seria a consubstanciação e a finalização completa deste processo. Ela tem que ser impedida. É um imperativo decisivo dos professores das redes públicas. É uma condição sine qua non do exercício de uma atividade intelectual digna.

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